No ano de 2003, que marcou o início do governo Lula, foi realizado em Brasília um seminário intitulado Ensino Médio: Ciência, Cultura e Trabalho, cujo propósito era debater e propor uma política de educação básica de nível médio tendo no centro duas problemáticas: enfrentar a fragmentação curricular que sempre caracterizou esta etapa educacional e colocar no centro desse debate as juventudes que frequentam a escola pública no Brasil. O evento representou um ponto de inflexão na busca por um novo projeto de Ensino Médio no Brasil que fosse capaz de organizar a massificação improvisada dos períodos anteriores e de democratizar o currículo desta etapa de ensino. Afinal, o país havia passado de pouco mais de três milhões de matrículas no Ensino Médio no início dos anos 1990 para nove milhões em 2004! As perguntas centrais eram: qual Ensino Médio para essas juventudes? Que juventude é essa que passa a integrar a última etapa da educação básica? Em termos de proposições, o que resultou daquele encontro – e contava com o respaldo de uma vasta produção de conhecimento – é que se estava diante da necessidade de construir um currículo menos fragmentado, mais integrado e capaz de permitir uma compreensão densa de um mundo cada vez mais complexo. Em decorrência daquele debate, se seguiram algumas experiências no terreno da política educacional: em termos curriculares, adquiriu centralidade o eixo ciência, cultura, trabalho e tecnologia, compreendidos enquanto dimensões da vida em sociedade e da formação humana. A tentativa de reformulação curricular se fez presente nas novas diretrizes curriculares nacionais exaradas pelo Conselho Nacional de Educação (Resolução CNE n. 02/2012), no Programa Ensino Médio Inovador, no Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio, dentre outras ações. Na contramão de tudo o que vinha sendo encaminhado, temos hoje uma Reforma do Ensino Médio que, em vez de integrar, desintegra. A Reforma vigente no país foi apresentada como Medida Provisória (MP 746/2016) poucos meses após a ascensão de Michel Temer à Presidência da República, em consequência do impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Com isso, o então presidente abortou o (ainda que insuficiente) processo de discussão sobre o Ensino Médio iniciado na Câmara dos Deputados em 2012. O uso do expediente autoritário da Medida Provisória para realizar uma reforma educacional foi criticado por entidades da sociedade civil organizada, mas também pelo então Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, que apresentou parecer ao Supremo Tribunal Federal alegando a inconstitucionalidade da medida. Ainda no ano de 2016, houve um intenso movimento de ocupações estudantis nas escolas de Ensino Médio e nas universidades públicas em 19 estados da federação, sendo alvos dos protestos a MP 746 e a PEC 241 do teto de gastos primários do governo de Michel Temer. O recado contra a proposição da Reforma foi dado pela juventude brasileira. Em 2017, a MP 746 foi convertida na Lei 13.415/2017, e o governo de extrema[1]direita eleito em 2018 aliou-se à Reforma para aprovar os documentos legais que dariam sua sustentação normativa. Assim foi estruturado e executado o edital do novo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) adaptado à Lei 13.415/2017, bem como aprovadas a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio em 2018. Assim, desde 2016, a Reforma do Ensino Médio assumiu a característica de projeto antipopular e de contornos autoritários. Sua implementação perpassou o governo ilegítimo de Michel Temer e ganhou continuidade natural no governo de extrema[1]direita e de viés conservador de Jair Bolsonaro, que ganhou as eleições após uma campanha eleitoral marcada pela desinformação. Nem mesmo a pandemia de Covid 19 e a gestão federal desastrosa que resultou em 667 mil mortes no Brasil foram suficientes para frear os anseios reformistas, que se aproveitaram da suspensão das aulas presenciais para acelerar a aprovação de currículos estaduais sem a devida participação das comunidades escolares, em flagrante desrespeito ao princípio constitucional da gestão escolar democrática. A implementação da Reforma do Ensino Médio pelos estados durante a pandemia revela mais uma de suas facetas perversas, impossibilitando o debate democrático, dificultando o controle social e aprofundando processos de precarização e privatização da educação pública. Ao publicar a MP 746/2016, o governo Temer justificou a medida com três objetivos que seriam alcançados pela Reforma: 1) tornar o Ensino Médio mais atrativo aos jovens, permitindo que estes possam escolher itinerários formativos diferenciados; 2) ampliar a oferta de ensino em tempo integral; e 3) aumentar o aspecto profissionalizante do Ensino Médio. No entanto, a implementação acelerada da Reforma em estados como São Paulo desnuda a falácia sobre a necessidade de diminuir o número de disciplinas no Ensino Médio, uma vez que, com os itinerários formativos, criou-se um conjunto de novas disciplinas sob a orientação de institutos e fundações da sociedade civil vinculadas ao capital, enquanto as disciplinas ligadas aos campos científicos, culturais e artísticos tradicionais da docência profissional em nível médio foram eliminadas do currículo – num claro movimento de desmonte das possibilidades de formação científica e humanística da juventude que estuda nas escolas públicas. A tão propalada liberdade de escolha por parte dos estudantes, uma das principais bandeiras de propaganda dos governos em defesa da reforma, tem se mostrado um engodo, visto que a escolha se restringe aos itinerários formativos disponibilizados pela escola, e que nunca abrangem a totalidade de possibilidades das redes de ensino. Ainda que, para alguns estudantes, a mudança de escola para cursar o itinerário desejado possa ser uma opção, isso não ocorre para a maioria, especialmente nos quase três mil municípios do país que possuem uma única escola pública de Ensino Médio. Até aqui, todas as evidências apontam para um mesmo fato: o compromisso da atual Reforma do Ensino Médio não é com a consolidação do Estado Democrático de Direito e nem com o combate às desigualdades sociais e educacionais no país. A Reforma está serviço de um projeto autoritário de desmonte do Direito à Educação como preconizado na Constituição de 1988. De fato, os primeiros impactos concretos da implementação da Reforma nos estados vão mostrando que a Lei 13.415/2017 vincula-se a um projeto de educação avesso à democracia, à equidade e ao combate das desigualdades educacionais, uma vez que ela: 1) Fragiliza o conceito de Ensino Médio como parte da educação básica, assegurado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), na medida em que esta etapa deixa de ser uma formação geral para todos. A incorporação do Ensino Médio na educação básica foi uma conquista recente do processo de democratização, e ainda não consolidada. Diante de um ensino secundário historicamente elitista, estratificado e propedêutico, a integração do Ensino Médio à educação básica foi uma medida importante para democratizar esta etapa, juntamente com a garantia de oferta de ensino noturno adequado às condições dos estudantes trabalhadores e da modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA) – ambos negligenciados pela Lei 13.415/2017; 2) Amplia a adoção do modelo de Ensino Médio em Tempo Integral sem assegurar investimentos suficientes para garantir condições de acesso e permanência dos estudantes, excluindo das escolas de jornada ampliada estudantes trabalhadores e aqueles de nível socioeconômico mais baixo, bem como estimulando o fechamento de classes do período noturno e da EJA; 3) Induz jovens de escolas públicas a cursarem itinerários de qualificação profissional de baixa complexidade e ofertados de maneira precária em escolas sem infraestrutura. Evidência disso é o Projeto de Lei 6.494/2019 que tramita na Câmara dos Deputados e visa alterar a LDB, propondo o aproveitamento “das horas de trabalho em aprendizagem para efeitos de integralização da carga horária do Ensino Médio até o limite de 200 horas por ano”. Mais uma vez, o que se propõe é a interdição do acesso qualificado ao conhecimento científico, à arte, ao pensamento crítico e reflexivo para a imensa maioria dos jovens que estudam nas escolas públicas, e que respondem por mais de 80% das matrículas do Ensino Médio no país; 4) Coloca em risco o modelo de Ensino Médio público mais bem-sucedido e democrático do país: o Ensino Médio Integrado praticado pelos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Trata-se de um modelo que adota cotas sociais e raciais de ingresso desde 2012 e que apresenta resultados excelentes em avaliações de larga escala como o PISA. Seu centro organizador é a integração entre uma Formação Geral Básica fundada nos princípios do trabalho, ciência, cultura e tecnologia e a Educação Profissional de Nível Técnico. A Lei 13.415/2017 rebaixa a educação profissional à condição de “itinerário formativo”, dissociando a formação geral básica da educação profissional; 5) Aumenta consideravelmente o número de componentes curriculares e acentua a fragmentação. Uma das justificativas para a Reforma do Ensino Médio era justamente a necessidade de diminuir o número de disciplinas escolares obrigatórias. Contudo, a implementação da Reforma nos estados vem realizando exatamente o contrário. Embora existam variações entre as redes estaduais, no estado de São Paulo – a título de exemplo – o 2o ano do Ensino Médio em 2022 possui 20 componentes curriculares; 6) Desregulamenta a profissão docente, o que se apresenta de duas formas: 1) construção de itinerários formativos que objetivam a aquisição de competências instrumentais, desmontando a construção dos conhecimentos e métodos científicos que caracterizam as disciplinas escolares em que foram formados os docentes, desenraizando a formação da atuação profissional; e 2) oferta das disciplinas da educação profissional por pessoas sem formação docente e contratadas precariamente para lidar com jovens em ambiente escolar. Tudo isso fere a construção de uma formação ampla e articulada aos diversos aspectos que envolvem a docência – ensino, aprendizagem, planejamento pedagógico, gestão democrática e diálogo com a comunidade; 7) Amplia e acentua o processo de desescolarização no país, terceirizando partes da formação escolar para agentes exógenos ao sistema educacional (empresas, institutos empresariais, organizações sociais, associações e indivíduos sem qualificação profissional para atividades letivas). Uma das dimensões desse problema é a possibilidade de ofertar tanto a formação geral quanto a formação profissionalizante do Ensino Médio a distância, o que transfere a responsabilidade do Estado de garantir a oferta de educação pública para agentes do mercado, com efeitos potencialmente catastróficos para a oferta educacional num país com desigualdades sociais já tão acentuadas; 8) Compromete a qualidade do ensino público por meio da oferta massiva de Educação a Distância (EaD). A experiência com o ensino remoto emergencial durante a pandemia da Covid-19 demonstrou a imensa exclusão digital da maioria da população brasileira, que impediu milhões de estudantes das escolas públicas de acessarem plataformas digitais e ambientes virtuais de aprendizagem. As mesmas ferramentas utilizadas durante a pandemia estão agora sendo empregadas pelos estados na oferta regular do Ensino Médio, precarizando ainda mais as condições de escolarização dos estudantes mais pobres; 9) Segmenta e aprofunda as desigualdades educacionais – e, por extensão, as desigualdades sociais –, ao instituir uma diversificação curricular por meio de itinerários formativos que privam estudantes do acesso a conhecimentos básicos necessários à sua formação, conforme atestam pesquisas comparadas que analisaram sistemas de ensino de vários países2 ; 10)Delega aos sistemas de ensino as formas e até a opção pelo cumprimento dos objetivos, tornando ainda mais distante a consolidação de um Sistema Nacional de Educação, como preconiza o Plano Nacional de Educação 2014-2024 (Lei 13.005/2014). Pelas razões acima expostas, é fundamental que o próximo governo do campo democrático REVOGUE A REFORMA DO ENSINO MÉDIO e abra um amplo processo de discussão sobre esta etapa da Educação Básica apoiado nos princípios estabelecidos na LDB de 1996 e nas discussões e construções teóricas acumuladas no campo progressista e democrático, de forma que qualquer mudança seja respaldada em um processo participativo e democrático. Brasil, 08 de junho de 2022.
ASSINAM Associação Brasileira de Alfabetização (ABAlf) Associação Brasileira de Currículo (ABdC) Associação Brasileira de Ensino de Biologia (SBEnBio) Associação Brasileira de Ensino de História (ABEH) 2 Ferreira, E. B.; Santos, K. C.; Gonçalves, T. A política do NEM no Espírito Santo: o que dizem os documentos nos seus contextos local e global. In: Korbes, C.; Ferreira, E. B.; Silva, M. R.; Barbosa, R. P. (org.). Ensino Médio em pesquisa. Curitiba: CRV, 2022. p. 33-46. Associação Nacional de História (ANPUH Brasil) Associação Brasileira de Pesquisadores em Educação Especial (ABPEE) Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (Abrapec) Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (Anfope) Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca) Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae) Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) Campanha Nacional pelo Direito à Educação Centro de Estudos Educação e Sociedade (Cedes) Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) Fórum Nacional de Coordenadores Institucionais do Pibid e Residência Pedagógica (Forpibid-RP) Fórum Nacional de Diretores e Diretoras de Faculdades, Centros, Departamentos de Educação ou Equivalentes das Universidades Públicas Brasileiras (ForumDir) Rede Escola Pública e Universidade (REPU) Sociedade Brasileira de Educação Matemática (SBEM) Sociedade Brasileira de Ensino de Química (SBEnQ) Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) e mais de 270 grupos de pesquisa, sindicatos e movimentos sociais.